sábado, 13 de fevereiro de 2010

A EDUCAÇÃO INTEGRAL LIBERTÁRIA CONTRA O NEOLIBERALISMO


Por Dário T. Santos

A proposta de uma educação integral e libertária

Para alguns pensadores do século XIX, como Bakunin (2003), que viam a educação como paixão e revolta, a impossibilidade da instrução integral[1] e de uma educação libertária na sociedade capitalista era uma realidade a ser enfrentada. Francesco Codello diz que para Bakunin educação e revolta era “...um binômio inseparável que serve, todavia, a uma dimensão absolutamente revolucionária da ação humana”. Acrescenta que para ele “educar significa substancialmente estimular e promover aquela dimensão rebelde e intolerável à autoridade, que caracteriza a natureza humana” (CODELLO, 2007, P.107).

Neste sentido a obra de Francesco Codello demonstra não só o lado mais radical da pedagogia libertária, mas, também, uma rica discussão sobre experiências libertárias e práticas anarquistas que tinham em comum a visão de que através da educação poderíamos compreender a sociedade e transformá-la (CODELLO, 2007), visto que traz temas bastantes pertinentes para o que se discute hoje sobre ensino profissional.

Tomamos aqui a noção de natureza-cultura como configuração do ambiente no qual a escola está inserida, e nela o seu corpo docente e discente, que pode ali refletir sobre a sociedade real e a desejada, tomando esta instituição como um espaço público no qual deveriam se disseminar e construir habilidades e/ou conhecimentos. Para tanto, situo a questão do trabalho dentro da lógica e da perspectiva neoliberal, para depois refletir sobre o seu papel de formação de sujeitos, em vista de uma educação comprometida com a questão da instrução integral do indivíduo e do exercício da cidadania.

Como na sociedade capitalista quem contrata é quem diz qual é o valor e a habilidade requerida para comprar trabalho, o saber e o conhecimento que desejamos terminam sendo privilégio de quem pode escolher o que fazer, sem necessitar se submeter ao contrato. Privilégio de quem possui o controle da propriedade e dos meios dos quais dependemos para sobreviver e produzir. Dessa forma, a escola tende a se abstrair da visão da natureza-cultura local, dando lugar ao entendimento de que o seu papel é apenas a certificação de competências, que terminam por garantir apenas a reprodução do capital.
A lógica do capital, trabalho precário e interesse social

Ao tratar da educação profissional, Ramon Oliveira (2006), a partir de Frigotto, faz uma crítica à Teoria do Capital Humano, buscando demonstrar programas desenvolvidos pela CEPAL e pelo Banco Mundial como subordinados à lógica do capital e de não contribuírem para existência de uma escola comprometida com a constituição de sujeitos de formação integral.
De acordo com Oliveira:
“Para Frigotto cabe, neste momento, aos setores de esquerda, a construção de um novo referencial ético e político cujo horizonte seja a constituição de novos sujeitos sociais. Neste sentido, a escola passa a ter um papel fundamental. Não uma escola reducionista, subordinada à lógica do capital, mas uma escola comprometida com a constituição de sujeitos de formação integral. Que tenha como objetivo o desenvolvimento de uma formação omnilateral e que possa contribuir, efetivamente, para que novos sujeitos sociais possam se inserir na vida política e desenvolver estratégias de lutas concretas contra a ofensiva neoliberal.” (OLIVEIRA, 2006, p.6)
A partir desta reflexão podemos discutir o papel das escolas públicas do ensino médio na formação profissional, ao mesmo tempo em que tentamos evidenciar o que poderia ser o referencial o ético e o político capaz de constituir o que Oliveira chama de novos sujeitos sociais.
O desafio de uma educação com instrução integral nos obriga pensar na construção de uma sociedade não capitalista, condição sem a qual a sua realização seria impossível, conforme pensava Bakunin:
“A primeira questão que hoje temos a considerar é esta: a emancipação das massas operárias poderá ser completa enquanto receberem instrução inferior a dos burgueses ou enquanto houver, de um modo geral, uma classe qualquer, numerosa ou não, mas que por nascença tenha privilégios de uma educação superior e mais completa?” (BAKUNIN, 2003, p.59)
Para ele a instrução integral só seria possível em um cenário de educação libertária (CODELLO, 2007, p. 121). Ante a educação burguesa e autoritária disseminada pelo estado, Bakunin coloca a necessidade de difundir a instrução científica e revolucionária, convidando indivíduos que possuem alguma forma de cultura superior a “abandonar as academias nas quais é construído um saber não ligado ao povo, separado do verdadeiro conhecimento que é formado na vida real” (Idem, p.122). O entendimento é de que a educação na sociedade neoliberal é posta a serviço da reprodução do capital, e que esta sociedade impossibilita a existência das condições para a realização da “boa educação”, possível apenas em uma sociedade justa e igualitária.
Por outro lado, atender o interesse da comunidade requer a compreensão do seu mundo, com limites e possibilidade igualmente imensos, demonstrando a necessidade de reflexão sobre o contexto natural-cultural como fundamental para promover o bem estar da população, e o desenvolvimento local sustentável, a partir de um quadro de referência que por certo reforçará a atitude de pensar a educação em bases reais, a partir da experiência, dos problemas e das vocações.
A decisão sobre o que atribuir como vocação econômica de uma localidade não pode prescindir de uma análise sobre a sua historia, nem se abstrair do contexto ambiental e natural-cultural no qual está inserida.
Natureza - cultura: a escola e a constituição de sujeitos de formação integral.
Tornar a escola viva é trazê-la para experiência. Se a escola se propõe formar sujeitos sociais, ela tem que se tornar uma escola viva que possa interagir com o ambiente natural- cultural que a envolve. Os sujeitos não podem ter a sua formação reduzida a habilidades especificas tais como as propostas pelas agencias oficiais de qualificação de mão-de-obra, que instruem indivíduos para a execução de tarefas, passíveis de futuramente serem substituídas por máquinas, ao mesmo tempo em que, conforme podemos perceber a aquisição de novas tecnologias torna aquele saber prescindível no processo industrial, e sem valor algum no mercado de trabalho.
Os caminhos que temos tomado conduzem, ou levam a crer, que se deve buscar a instrução integral. O que ocorre na prática da educação burguesa e autoritária é a negação do conhecimento aos menos favorecidos economicamente, visto que a democratização do saber tem muitos entraves a superar e só será plena em uma sociedade onde existam iguais oportunidades. A instrução integral não é um mecanismo de tornar os indivíduos conhecedores e habilitados para todas as tarefas, mas permite que, dentro de um ambiente de liberdade, ele possa escolher aquele conhecimento e fazer que mais lhe satisfaça e assim prestar a sua contribuição para a coletividade. A educação não pode ser instrumento para submissão, muito pelo contrário, deveria proporcionar a felicidade como afirmava William Godwin[2].
Como não vivemos numa sociedade de iguais, resta saber as alternativas que possam devolver a educação o seu papel e o seu poder de influenciar a sociedade. Centro de convívio social, espaço público, a escola deixou de ser um centro de conhecimento e cultura para se tornar uma agência certificadora de saberes a serviço do capital. Abdica-se da formação moral e ética do indivíduo, sob a suposta supremacia do saber técnico, por sua vez permanentemente superado pelo avanço da ciência. Abdica-se principalmente da experiência ao tornar a escola um centro de certificação do saber em detrimento do conhecimento gerado da vivência.
Entre o modelo ideal de escola proposto por diversos pensadores e aquela que funciona apenas como mecanismo a serviço do capital, caberia refletir sobre a possibilidade de um projeto político-pedagógico que pensasse a escola dentro do contexto atual da nossa sociedade, buscando na experiência deste pensar a crítica a um modelo excludente de economia que tem limitado tanto desenvolvimento da sociedade como seu trabalho, restringindo-o à certificação de saberes úteis em sua essência à reprodução do modelo de sociedade neoliberal, cumprindo apenas um papel burocrático de habilitar saberes estandardizados, que não acrescenta quase nada àquilo que poderia se chamar desenvolvimento humano, estimulando assim a sociedade a buscar pela experiência no ambiente cultural-natural, conhecimentos que ajudassem a superar os seus problemas. Um espaço social que resultasse da discussão de um projeto político-pedagógico de fato em condições de contribuir para o fim desse modelo neoliberal.
No caso da educação pública os gestores das escolas se sentem compelidos a cumprir as exigências e funções burocráticas estabelecidas e controladas pela administração do sistema de ensino e fragilizados para estabelecer uma relação mais direta com o aluno e com a sua comunidade, tendo em vista a herança de um sistema de ensino centralizado e verticalizado que não autoriza e nem confere a escola a necessária autonomia na gestão da educação.
A escola tem que discutir os problemas da sua comunidade, caso contrário não estará contribuindo com a sociedade na sua função primordial. Os sistemas educacionais se tornaram tão gigantescos que mal podem enxergar as especificidades de escolas locais. Ao pretender controlar, o sistema educacional põe-se a serviço do poder exercido pelo estado em favor das classes dominantes. Continuaremos causando o maior prejuízo para a educação ao se contentar com pouco, pensar que somos incapazes, e nos submetermos ao capricho de interesses que não são nossos. Uma experiência que tomasse patrimônio natural-cultural no contexto de cada escola como base para reflexão sobre a educação e para o seu projeto político-pedagógico talvez seja um caminho para formar indivíduos com instrução integral.

[1] “A instrução deve ser igual em todos os graus para todos; por conseguinte deve ser integral, quer dizer, deve preparar as crianças de ambos os sexos tanto para a vida intelectual como a vida do trabalho, visando a que todos possam chegar a ser pessoas completas”. (BAKUNIN, 2003, p.78)
[2] Codello diz que Godwin, “No seu primeiro ensaio, declara explicitamente que o verdadeiro e grande escopo da educação é provocar felicidade. A felicidade do indivíduo em primeiro lugar. Se todos os indivíduos são felizes a comunidade inteira também o será. O homem é um ser social e é necessariamente ligado aos outros indivíduos. Disso deriva que cada homem deveria ser educado para assistir aos outros, e o primeiro objetivo a se estabelecer consiste em educar o homem a ser feliz, e o segundo, a ser útil, ou seja, virtuoso. Virtude e utilidade são, nesse contexto, sinônimos. (CODELLO, 2007, p.54)

3 comentários:

Anônimo disse...

"O trabalho de Codello é, sem dúvida, o mais importante e mais completo que a historiografia sobre o educacionismo anarquista e libertário possa, até este momento, mostrar com orgulho, tanto em nível italiano quanto internacional. Em sentido mais geral, esta obra assinala um grande resultado da historiografia sobre o anarquismo, premiando, de forma justa, um trabalho de anos de pesquisa e reflexão."

in: A BOA EDUCAÇAO 1: EXPERIENCIAS LIBERTARIAS E TEORIAS ANARQUISTAS NA EUROPA - DE GODWIN A NEILL
Francesco Codello

editora imaginário

Anônimo disse...

Ramon Oliveira:

Desqualificão da Educação Profissional Brasileira

editora: Cortez

Anônimo disse...

mikhail bakunin:

A Instrução Integral

editora: Imaginário
ano: 2003

A primeira questão que temos de considerar hoje é esta:

Poderá ser completa a emancipação das massas operárias enquanto recebam uma instrução inferior à dos burgueses ou enquanto haja, em geral, uma classe qualquer, numerosa ou não, mas que por nascimento tenha os privilégios de uma educação superior e mais completa?

Quem souber mais dominará naturalmente a quem menos sabe e (...) essa diferença produzirá em pouco tempo todas as demais e o mundo voltará a encontrar-se em sua situação atual, isto é, dividido numa massa de escravos e num pequeno número de dominadores, os primeiros trabalhando, como hoje em dia, para os segundos.